A resposta mais rápida para essa pergunta seria: movimentação e leitura implacável dos movimentos do pelotão, resiliência inabalável e condicionamento físico excepcional. Mas essas são virtudes necessárias apenas para chegar à linha de partida do Tour de France. O que mais, então, é preciso para lutar pela vitória?
O Tour de France é uma das 3 provas mais difíceis de se ganhar. Para muitos, o Tour é o todo-poderoso entre as grandes voltas. Às vezes não é onde os ciclistas encontrarão o percurso mais difícil, mas sem dúvida é, atualmente, onde estão a maioria dos melhores ciclistas da atualidade.
A edição deste ano (2023) soma 3.404 km em 21 etapas, com uma elevação acumulada total superior a 56 mil metros. Apenas ser selecionado para a largada exige estar em ótimas condições físicas, mas vencer a maior corrida de todas exige muito mais do que estar apenas em sua melhor forma. Os contendores da classificação geral (GC) são indiscutivelmente os atletas mais bem preparados de todo o planeta – mas o que exatamente é preciso, em termos de talento e treinamento, para chegar lá? Em outras palavras, o que os torna os melhores dos melhores?
A descrição básica de um vencedor do Tour de France historicamente é: europeu, geralmente com idade entre 24 e 34 anos, altura entre 1,75 m e 1,85 m e baixo peso corporal, algo em torno de 60 a 66 kg. Porém, na história, houve exceções: o bicampeão Tadej Pogačar (EAU Team Emirates), por exemplo, tinha apenas 21 anos quando conquistou seu primeiro título em 2020 – 98 anos depois que o vencedor mais velho da prova, Firmin Lambot, de 36 anos, ter conquistado o título em 1922. O primeiro vencedor, em 1903, foi Maurice Garin, um pequeno ciclista de 1,62 m, enquanto o vencedor de 2012, Bradley Wiggins, tinha 1,90 m. Na balança, o pentacampeão Miguel Induráin pesava 80 kg, cerca de 28 kg a mais que o compatriota espanhol Luis Ocaña, que venceu em 1973. Quanto aos não europeus, foram três: o americano Greg LeMond, que venceu em 1986, 1989 e 1990, o australiano Cadel Evans que venceu em 2011, e o colombiano Egan Bernal que se tornou o primeiro vencedor sul-americano em 2019.
Portanto, não há um perfil atlético perfeito, que represente o vencedor do Tour de France. Mas então como definir aqueles que lutarão pela vitória, quais são seus os hábitos? A primeira coisa que devemos saber é que esse individuo tem uma vocação diferenciada para traçar um objetivo e alcança-lo. E o que mais?
- FOCO NO TRABALHO INABALÁVEL
O caminho para um Grand Tour começa nos meses frios e escuros do inverno, quando um ciclista profissional registra semanas de treinamento de 30 horas em baixa intensidade, aumentando a eficiência aeróbica e reforçando a capacidade do corpo de queimar combustível como gordura – para forçar usando o mínimo de energia possível. À medida que a primavera se aproxima, mais trabalhos de ritmo, sublimiar e limiar são introduzidos, e o trabalho se torna cada vez mais personalizado e específico.
“Não há sessões específicas para quem vai para a geral, o mais importante para eles é que possam se recuperar de grandes cargas”, diz o chefe de desempenho da Bora-Hansgrohe , Dan Lorang. “Quem vai brigar pela geral treina em um ritmo de três para um: três semanas de carga, uma semana de recuperação. Esses ciclistas escalam muito mais e treinam para reproduzir esforços de alta intensidade após quatro a cinco horas”. Fazer grandes esforços depois de muitas horas em ritmo alto e constante é o pão com manteiga para os possíveis vencedores do Tour. “Um exemplo seria quatro horas de treinamento na Zona 2 , terminando com 30 minutos de subida de limiar para simular uma subida final”, acrescenta Lorang. “Os caras da GC também treinam em suas bicicletas de contra-relógio duas ou três vezes por semana.”
Para simular as demandas de uma volta de três semanas, muitos deles treinam intensamente durante uma semana e vão direto para uma prova por etapas de uma semana ou estendem um bloco pesado de treinamento para imitar as três semanas de uma grande volta. Duas semanas antes do Tour, eles diminuem intensidade e volume para dar ao corpo o devido descanso antes das três semanas de disputa.
- WATTS POR QUILO, O MELHOR DO MUNDO
Pensar no ciclismo apenas como um jogo de watts por quilo remove o romance e o brio, mas as diferenças de tempo são feitas, na maior parte das vezes, nas montanhas e nos contrarrelógios, e, nesses casos, isso acontece graças à potência gerada pelo ciclista. Simplificando, quem deseja vencer o Tour de France, precisa ser capaz de manter uma potência excepcional por um período prolongado de cerca de 30 minutos após várias horas de prova em intensidade variada.
Os números são alucinantes. Quando Jonas Vingegaard conseguiu eliminar toda a concorrência na etapa 11 do Tour 2022 e vencer no topo do Col du Granon (11,3 km a 9,2% de gradiente), ele gerou uma potência média de 6,1 w/kg por 35min52. Seis dias depois, na etapa 17, Brandon McNulty (UAE Team Emirates) escalou o Col d’Azet (8,34 km, 7,9%) com média de 6,58 w/kg por 22min24. Foi o tempo mais rápido já registrado.
Quem já treinou um pouco mais sério e fez o famoso teste de 20 min, pode imaginar o que é pedalar a 6,5 w/kg. Um ciclista amador que participa e disputa vitórias das provas nacionais consegue gerar pouco mais de 5 w/kg, imagine então sustentar mais de 6w por 20 minutos ou mais e, ainda, após percorrer, muitas vezes, mais de 100, 150 km. O ritmo é surreal e inimaginável para a maioria dos ciclistas amadores. Em períodos mais curtos, de cerca de 10 minutos, alguns ciclistas profissionais, incluindo o ex-vencedor do Tour Chris Froome (Israel-Premier Tech), registraram números impressionantes de mais de 7 w/kg.
Durante uma etapa, antes de qualquer ataque acontecer, ou depois que a fuga se consolida, o pelotão profissional pedala a 220, 250 watts. É um grande esforço para a maioria de nós, mas para eles, nessa toada é como um grande passeio. Vale lembrar que o limiar funcional de potência (FTP) de um ciclista que disputa a geral, como Tadej Pogačar – é de aproximadamente 415 watts (que ele pode sustentar por uma hora).
- VO2MAX ACIMA DA MÉDIA DOS MELHORES
VO2max significa Volume (V) de Oxigênio (O2) Máximo (max). Representa, precisamente, o volume máximo de oxigênio que o nosso corpo consegue absorver e utilizar durante um exercício. Também é chamado de potência aeróbica máxima.
O VO2max de um homem sedentário está em aproximadamente 30 à 35 mL/kg/min, enquanto que os maratonistas mais famosos tem um VO2max de aproximadamente 70 mL/kg/min.
As mulheres tem, em média, um VO2max um pouco menor, variando entre 20 à 25 mL/kg/min nas sedentárias e de até 60 mL/kg/min nas atletas porque possuem naturalmente uma maior quantidade de gordura e menor quantidade de hemoglobina.
O VO2max pode ser melhorado substancialmente com treinamento, mas qual é VO2max de quem ganha a camisa amarela? Muito, muito mais alto. Quando Chris Froome estava dominando os Tours (2013-2018), ele podia ingerir 88,2 mL/kg/min. Mas, apesar de alto, ainda não era dos maiores já registrados no ciclismo de estrada. O americano Greg LeMond, vencedor do Tour em três ocasiões, teve um VO2max relatado de 92.
Sem dúvida alguma, para estar na linha de largada do Tour de France, seu VO2max precisa estar na casa dos 70.
- CORAÇÃO FORTE
Durante o Tour de France 2020, a equipe WorldTour americana, agora conhecida como EF Education-EasyPost, divulgou dados sobre a frequência cardíaca e a variabilidade da frequência cardíaca de cada um de seus ciclistas. Entre a lista dos oito que estavam na disputa, a frequência cardíaca média em repouso era de 42 bpm antes do início do Tour. Durante a prova esse número subiu para 51 bpm antes do primeiro dia de descanso, mas depois de um dia de folga caiu para 40 bpm, destacando o poder de recuperação.
Chris Froome tinha uma frequência cardíaca em repouso relatada de 29 bpm, e a de Miguel Induráin era ainda menor, de 28 bpm – cerca de metade da velocidade da frequência cardíaca de um adulto típico. O sistema cardiovascular de um ciclista profissional é tão eficiente que essa pulsação lenta é rápida o suficiente para, em repouso, fornecer ao corpo todo o sangue e o oxigênio de que ele precisa.
Em dias intensos nas montanhas, com corridas a todo vapor, quem está na briga pela geral gasta até 50% do dia se exercitando nas zonas de frequência cardíaca superiores, de 80 a 90% de sua frequência cardíaca máxima.
- NÍVEIS DE GORDURA BAIXÍSSIMOS
Basta olhar para um ciclista que está disputando a geral do Tour de France para verificar que eles não tem gordura nenhuma sobrando. Um homem “normal” geralmente tem gordura corporal entre 18 e 24% – mas para nossos ciclistas do Grand Tour, determinados a superar as maiores montanhas da Europa, sua gordura corporal precisa ser a mais baixa possível, em torno de 5-6%.
Há um perigo, no entanto, em ir muito baixo. O corpo precisa de 3% a 5% de gordura corporal para proteger os órgãos e regular a temperatura corporal, portanto, embora haja alguns casos relatados de ciclistas competindo com menos de 5% de gordura corporal, esse é o mínimo que eles podem atingir sem prejudicar a saúde.
- APETITE SEM FIM
Tornou-se um clichê da imprensa de ciclismo quantificar a ingestão diária de calorias de um ciclista do Tour de France mostrando o número equivalente de Big Macs do McDonald’s. Ai vai, então: são 12 a 18 Big Macs, dependendo da etapa.
Um ciclista que está disputando o Tour consome entre 6.000 e 9.000 kcal de comida durante as 24 horas de um dia com etapa. Em corridas de até seis horas por etapa, eles queimam cerca de 1.000 kcal por hora. Sabendo desse dado, é compreensível que os ciclistas tendem a perder peso e eliminar gordura durante um Grand Tour, já que consumir o suficiente – em alimentos e bebidas carregadas de carboidratos – não é fácil.
Às vezes, perder um pouco de peso está nos planos: no Giro de 2018, por ex, Chris Froome, que tinha como objetivo do ano, vencer Giro e Tour, comeu apenas 2.500 calorias na etapa 11, tentando alcançar seu seu peso ideal de 68,5 kg. Ele deve ter alcançado, já que, dias depois, ele conseguiu seu famoso ataque na etapa 19 e saiu do quarto para o primeiro lugar geral, levando a Maglia Rosa.
- TANQUES DE CARBOIDRATOS CHEIOS
Pedalar implacavelmente por três semanas só é possível consumindo grandes quantidades de carboidratos – antes e durante cada etapa. Iñigo San Millán é o chefe de desempenho da UAE-Team Emirates: “Eles precisam absorver 500 gramas de glicogênio [carboidrato armazenado] antes do início da corrida”, diz ele. “Eles devem estar completamente cheios antes da corrida e vazios depois.”
Encher o tanque depende de cafés da manhã gigantescos contendo 200g de carboidratos – equivalente a cerca de 13 fatias de pão – com quantidades semelhantes para o jantar, uma vez que o dia termina. Durante as etapas, eles reabastecem suas reservas de energia com cerca de 100g de carboidratos por hora, em várias formas, incluindo géis energéticos, bebidas com carboidratos e bolos de arroz. Ao longo de um dia, um ciclista ingere uma carga massiva de carboidratos de cerca de 1.200g – em comparação com cerca de 300g em uma dieta normal.
- DORMIR COMO UMA PEDRA
“O sono é o recurso de recuperação mais importante para as pessoas em geral, mas especialmente para os ciclistas que usam seus corpos de forma tão intensa”, diz o chefe de desempenho da Jumbo-Visma, Mathieu Heijboer. “O enorme esforço durante uma corrida prejudica o corpo… [e] a recuperação física é, portanto, o mais importante. O sono profundo é essencial. Se for perturbado, prejudica a recuperação, o que retarda os tempos de reação, causa problemas de memória e afeta negativamente a coordenação motora”.
Dormir bastante, noite após noite, é essencial para quem quer vencer o Tour de France. Algumas equipes carregam seus próprios colchões e roupas de cama, tal é a ênfase em um bom sono. Em média, os ciclistas, durante um Grand Tour, dormem oito horas, com a maioria indo para a cama às 23h30 e acordando às 8h. Pode parecer tarde, mas as etapas só começam por volta das 13h e o jantar geralmente não é servido antes das 21h.
- PASSAR SEMANAS EM ALTITUDE
Várias vezes por temporada, as equipes levam seus ciclistas para acampamentos em altitude para aumentar seus níveis de hemoglobina no sangue – o componente do sangue que transporta oxigênio e dá ao sangue sua cor vermelha. Ter mais hemoglobina permite que um esportista de endurance não apenas tenha um desempenho melhor em altitudes mais altas, mas também utilize o oxigênio com mais eficiência ao nível do mar.
“Para quem deseja vencer um Grand Tour, eu recomendaria que passasse dois períodos de 18 dias em altitude e depois um bloco de 15 dias antes do Grand Tour”, afirmou Dan Lorang da Bora-Hansgrohe.
Essa abordagem é espelhada em todo o WorldTour. O bloco final de altitude deve terminar o mais próximo possível do início da corrida, pois metade do aumento de hemoglobina desaparece após uma semana e volta ao normal após quinze dias. Se o acampamento de altitude for muito cedo, “o efeito evapora”, de acordo com o professor Lars Nybo, da Universidade de Copenhague.
“Acampamentos em altitude realizados no inverno ou na pré-temporada quase certamente não terão efeito direto no desempenho vários meses depois.”
- BOA ADAPTAÇÃO AO CALOR
O Tour de France acontece anualmente em julho. As temperaturas nessa época do ano são altas e podem prejudicar aqueles que não estão, ou não tem, tanta facilidade em pedalar com essa temperatura.
Na etapa 15 do Tour de France de 2022, por exemplo, a temperatura chegou perto dos 40 ºC e isso acaba tornando a vida dos ciclistas, durante uma etapa, ainda mais tensa.
À medida que as temperaturas do verão estão cada vez mais altas e percebendo que o calor excessivo pode ter um efeito direto no rendimento dos atletas, a Ineos Grenadiers começou a aperfeiçoar as estratégias de resfriamento. “Um aumento de um grau na temperatura central resulta em uma queda de 1% na eficiência bruta, o que significa uma mudança de 10 a 12 watts”, diz Dan Bigham, engenheiro de desempenho da Ineos. Foi então que eles desenvolveram os coletes de gelo que atualmente já são comuns entre as equipes.
O QUE TORNA POGAČAR TÃO ESPECIAL?
Embora Tadej Pogačar não participe do Tour deste ano como o atual campeão, é amplamente aceito que o esloveno é ciclista mais completo do planeta. Alguns acreditam que ele pode até superar as façanhas vencedoras de Eddy Merckx . Mas o que o torna tão bom?
“Em primeiro lugar, ele tem um motor enorme”, diz Allan Peiper, amigo de longa data e mentor de Pogačar. “Ele tem um poder de recuperação que nunca vi antes. É natural, com certeza. Existem muito poucos caras que podem entrar em um Grand Tour e melhorar e manter o motor funcionando, mas Tadej é um deles.”
“Estive em campos de treinamento da UAE-Team Emirates em que ciclistas se esforçaram para acompanhá-lo e acabou isso acabou prejudicando ao invés de beneficiá-los.”
Não é apenas o excepcional sistema cardiovascular do jovem de 24 anos. “A outra coisa que define Tadej é sua abordagem e visão da vida: ele sempre tem uma mentalidade positiva”, acrescenta Peiper. “Ele tem um jeito de colocar tudo em perspectiva, e essa habilidade de fazer isso quando você está no limite de um Grand Tour o mantém direcionado ao seu objetivo.”
“Você pode ter todas essas excelentes características físicas, mas se estiver sobrecarregado pelo lado mental ou dominado pelo estresse ou pelo medo do fracasso, isso o derrubará. Tadej tem tanto talento físico quanto esse lado mental inacreditável. Não tenho ideia do que motiva esse garoto, mas definitivamente não é o ego”.
VENCEDORES PELA PRIMEIRA VEZ
COMO VINGEGAARD E REMCO VENCERAM GRAND TOURS NO ANO PASSADO?
Todos os Grand Tours do ano passado foram vencidos por ciclistas que nunca haviam vencido uma corrida de três semanas: Jai Hindley no Giro d’Italia, Jonas Vingegaard no Tour de France e Remco Evenepoel na Vuelta a España .
O técnico deste último, Koen Pelgrim, resume como o atual campeão mundial garantiu estar em ótimas condições para vencer o Grand Tour espanhol: “Ele precisava de uma base muito boa para otimizar sua forma. Alguns meses antes, estávamos nos concentrando em trabalhos mais curtos e, mais perto da Vuelta, fizemos esforços específicos e mais longos, para que ele pudesse lidar com vários dias consecutivos e vários esforços.
“A Vuelta teve muitas subidas íngremes, então ele fez muito esforço em subidas mais íngremes e também treinou no meio do dia na Espanha para se acostumar com o calor. Quando está quente e íngreme, você sofre mais, e queríamos que ele estivesse totalmente aclimatado a isso.”
Quanto a Vingegaard, de 26 anos, seu técnico Tim Heemskerk enfrentou um dilema depois que o dinamarquês terminou em segundo lugar no Critérium du Dauphiné. “Ele estava em ótima forma e eu tinha uma escolha a fazer: deixo ele ter mais dias de recuperação ou não?” ele reflete. “Tínhamos três semanas até o Tour, não podíamos deixá-lo ficar doente e não podíamos deixá-lo exagerar.
Este é o momento em que um treinador realmente precisa analisar e administrar a situação. “Colocar alguém na melhor forma possível requer muito trabalho duro do atleta, de seus treinadores, do nutricionista e foco para planejar tudo corretamente. Otimizar a recuperação é realmente essencial.”